INTRODUÇÃO
A partir da pesquisa realizada, destacamos que do ponto de vista cultural, não há um ritual que marque a transição de bebê para criança – mas sim um conjunto de indicadores que juntos, podem indicar essa transição, como o abandono da fralda, da chupeta, do berço, o lugar onde se alimentam e o tipo de refeição, dentre outros.
Assim, nós propomos um olhar que não se prende a uma definição etária.
Assumimos que “bebê” é um estatuto social. E que a transição para o estatuto “Criança” envolve uma negociação que inclui tanto o próprio bebê, como os adultos ao seu redor e outros bebês e crianças.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Esse projeto assume que o sujeito e o indivíduo que somos não são inerentes ao nosso ser. Referem-se antes a dimensões do ser, construídas a partir de nossas experiências e dos acontecimentos que nos afetam e nos transformam e de um conjunto de linhas de forças e de dispositivos que atuam sobre nós. Desse modo, o estudo de bebês nos abre a possibilidade de acompanhar um pouco o modo como esses processos se desenvolvem e atuam sobre o ser, desde o seu nascimento.
Exploramos o conceito Individuação a partir de diálogos com GIlbert Simondon. A partir de seus conceitos de Condição pré-individual, olhamos para o bebê como uma singularidade repleta de potencialidades e cujas atualizações que vive não se prendem a modelos pré-definidos. O estudo dos processos de individuação coletiva na perspectiva proposta pelo autor revela-se potente para discussões sobre a transição do estatuto de bebê para o estatuto de criança.
Para falarmos de subjetivação e singularização, consideramos que Guattari, em seus textos, aponta como mesmo os bebê e crianças muito novas são alvos das semióticas dominantes a partir de processos de iniciação que correm tanto em casa como na creche.
No livro publicado em parceria com Suely Rolnik, Guattari afirma que “a subjetividade não é própria da natureza humana, mas produzida, fabricada de diferentes formas, como por exemplo, pela mídia, pelas revoluções científicas e pela informática.
Podemos acrescentar: a subjetividade é fabricada também pela linguagem, pela materialidade dos objetos oferecidos, pelos espaços cujo acesso são permitidos ou não, pelas expectativas de gênero e raça apresentadas e tantos outros elementos
Deleuze e Guattari também se remetem ao trabalho Deligny, uma referência fundamental em nosso projeto, tanto a partir das ideias-conceitos de Linhas costumeiras, linhas de errância, produção do homem-que-somos, projeto pensado, topos e rede, quanto a partir da cartografia como forma de registro de trajetos.
A abordagem de registro desenvolvida por Deligny (2015) buscava desafiar o imperativo da linguagem verbal. Buscava outra forma de linguagem, pautada no traçar. O desafio de Deligny era traçar modos singulares de ser e sua linhas de errância. Neste sentido apostamos que este modo de “estar com”, traçando deslocamentos, movimentos e relações com o espaço, topos, poderia ser muito rico para os Estudos de bebês, que também nos tencionam em sua relação com a linguagem verbal (TEBET E ABRAMOWICZ, 2014, 2016, 2018).
A partir da pesquisa realizada por Tebet (2013) e de artigos publicados por Tebet e Abramowicz (2014, 2018), passamos a compreender que que os bebês exigem uma epistemologia específica, em relação às crianças e frente à família. desde então, temos discutido metodoslogias e conceitos importantes dos estudos da infância contemporâneos e sua pertinência (ou não) para o estudo de bebês.
A Sociologia da primeira infância tem nos oferecido alguns caminhos possíveis, sobretudo, a partir de perspectivas que dialogam com os estudos pós-estruturalistas desenvolvidos por Mozère (2006, 2007, 2019), com forte influência de Guattari, Deleuze e Foucault. No campo da Geografia, dialogamos com os mapas vivenciais de Jader Lopes e seus colaboradores, as cartografias intensivas de Prève, as discussões de Jorn Seeman sobre cartografias biográficas, as ideias de Louise Holt sobre os processos de subjetivação de bebÊs e sua relação com o espaço e de Stuart Aitken sobre contra-topografias.
A partir dessas referências, desde 2015 temos observado como as cartografias também nos oferecem pistas interessantes para traçar as experiências vividas pelos bebês em diversos contextos (TEBET, 2015; OLIVEIRA, 2016; MORAES, 2017; COSTA, 2019; PONTES, 2020).
DISTINTOS ESPAÇOS
A pesquisa aconteceu em doze cidades brasileiras e mais uma cidade francesa e uma cidade Colombiana:
No Brasil:
- Campinas/SP
- Vinhedo/SP
- Hortolândia/SP
- Jundiaí/SP
- Diadema/SP
- São Paulo/SP
- Dourados/MS
- Ponta Porã/MS
- Lucas do Rio Verde/MT
- Rio de Janeiro/SP
- Belho Horizonte/MG
- Salvador/BA
Na Colômbia:
- Barranquilla/ District of Atlántico Department
Na França:
- Marseille/ Província Apes Côte d´Azur
Em algumas dessas cidades a pesquisa se desenvolveu em creches. Em outros casos, acompanhamos bebês em atividades com suas famílias: em suas casas, em parques, na feira, centros culturais ou espaços religiosos, sendo um dos nossos lócus de pesquisa um terreiro de candomblé.
Graças a uma grande equipe pesquisadoras e colaboradora, ao todo foram pesquisadas 3 creches francesas, 9 creches brasileiras, 8 famílias colombianas e 9 famílias no Brasil.
TEMAS ABORDADOS
A pesquisa se voltou para os temas da
- espacialidade
- materialidade
- gênero
- identidade étnico-racial
- Formação de Grupos
- Linguagem
- Rituais
- Agência
e o modo como cada um desses temas atuam nos processos de individuação, subjetivação e singularização vividos por bebês em diferentes espaços.
DESTAQUES
Também destacou redes e linhas de errância produzidas por bebês.
Evidenciou a força do projeto pensado pelos adultos de modo geral nos processos de subjetivação que produzem o que Deligny denomina como “homem-que-somos” em contraposição ao “humano”.
Traçou as linhas de captura que se impões aos bebês, e as fronteiras (visíveis, invisíveis e circunstanciais) que são produzida e cruzadas cotidianamente.
Registrou também adultos que não se prendem ao projeto pensado e se permitem serem tocados pelas linhas de afe(c)tos .
Nesse processo de individuação docente, vimos também emergir linhas de errância ou de singularização pedagógicas, um tema que certamente merece novas pesquisas e aprofundamentos.
RESULTADOS
Por fim, ressalta-se as potencialidades do uso da cartografia dos trajetos e dos afe(c)tos na formação de professores como forma de nos aproximar das minúcias das vidas e das aprendizagens de bebês, a partir de um olhar atento para bebês e suas relações com o espaço, com os elementos materiais e com os demais bebês, crianças e adultos com os quais convivem – seja na creche, na família ou em outros espaços.
Neste trabalho exploramos as potencialidades da cartografia na pesquisa com bebês. Defendemos a ideia de que a cartografia nos oferece condições para de fato visibilizar os bebês, seus agires, as linhas que traçam cotidianamente, e que muitas vezes não são percebidas pelos adultos. A Cartografia é defendida aqui como uma ferramenta epistemológica e metodológica que nos permite ultrapassar a imagem de que bebês apenas dormem, mamam e evacuam.
A cartografia nos permite ver todo o resto que faz parte da vida dos bebês, a partir da observação atenta dos agenciamentos produzidos pelos bebês e aqueles outros de captura de seus fluxos de desejo. Nos permite traçar as redes em que bebês participam e o modo como o comum vai sendo produzido nas relações cotidianas. Nos permite evidenciar as linhas de captura produzidas pelos adultos e que muitas vezes impõem o nosso projeto pensado sem dar a menor chance às linhas de errância que bebês esboçam.
Mas também nos permite identificar a importância de adultos que atuam como presenças próximas permitindo que as errâncias dos bebês se transformem em encontros e algumas ações que denominamos como errâncias pedagógicas, quando as profissionais abrem mão do planejamento comum e regulamentar para propor novas experimentações e agenciamentos.
A identificação desses trajetos nos permitem identificar relações de poder, o modo como o espaço e os objetos e outros humanos atuam sobre nós, sobre os bebês… E ao mesmo tempo, o modo como os bebês, as crianças e os adultos atuamos no espaço.
O acompanhamento dos movimentos, processos e linhas de força que produzem o “homem-que-somos” permitiu-nos traçar das linhas costumeiras e linhas de errâncias observadas na educação de bebês. Constatamos que estas nos oferecem interessantes pistas para discutirmos a produção do “homem-que-somos”, no sentido explorado por Deligny e definido como “produto de uma longa domesticação” (DELIGNY, 2015, p.67), e estruturado pela “ordem simbólica“.
A partir das reflexões tecidas ao longo deste texto e das cartografias apresentadas, destaca-se o potencial que a proposta de trabalho de Deligny a partir das cartografias de trajetos oferece tanto para pesquisas no campo dos Estudos de Bebês, da Educação Infantil e da docência junto a bebês quanto para pesquisas no campo da Geografia das Crianças (e de bebês) ao evidenciar o papel do topos na constituição de redes.
Tal perspectiva oferece ainda subsídios para uma ontologia do ser a partir do estudo de bebês, mas os resultados obtidos até aqui já tem impacto significativa a formação de professores e a educação do nosso olhar para nos aproximarmos de bebÊs sem as amarras de tantso projetos pensados, afinal, como diz Deligny: os bebês não têm disposição alguma para o projeto pensado! (2015, p.34)
As cartografias produzidas no projeto revelam as minúcias das vidas de bebês, as linhas costumeiras, do planejamento adulto (projeto pensado, linhas de subjetivação, linhas de captura) e as linhas de errância produzidas ora por bebês, ora por adultos ou por crianças. Linhas de singularização, produção de redes, de um fora da norma.
Fora do modelo. Linhas de Diferença.Essas cartografias também revelam como nosso olhar e nossas sensibilidades estão colonizados pela lógica adulta e produtivista . Somos também nós, professores e pesquisadoras subjetivadas a partir dos interesses do sistema capitalístico (Guattari e Rolnik,2013; Guattari, 1987). Nosso olhar e nossos sentidos modelados para valorizar a produção, o produto. Desse modo, pesquisa bebês é também um processo de singularização docente. Um processo de produção de outras subjetividades e outras sensibilidades, capazes de olhar e ser afe(c)tadas por agires para nada, agores sem projeto.
Estudar bebês é se permitir encontrar com o que resta quando nos despimos da subjetividade capitalística. É ser capturado por redes “que se tramam fora da sociedade abusiva” e aprender a respeitar as coisas desimportantes, os seres desimportantes. Amar o resto, como Manoel de Barros, em seu poema “O apanhador de desperdícios” ou no poema “Escovar palavras”.
O poeta, a partir de seu amor pelo resto, “escovava palavras”. Nós, “escovamos movimentos”, para deles, produzir traços. Cartografias das coisas desimportantes que marcam a experiência de bebês em diversos contextos e que tanto têm a nos dizer. Só precisamos estar abertos a esse
encontro!